Neste texto introdutório apresento as bases da Semiótica Periceana de Charles Sanders Peirce
Neste texto produzido para a minha dissertação de mestrado sobre Semiótica no CMS WordPress, eu apresento um pouco da Semiótica de Peirce.
Modernamente, os estudos da Semiótica tiveram prelúdio através dos trabalhos do filósofo lógico Charles Sanders Peirce, cientista norte-americano. Peirce, como é chamado, dedicou grande parte de sua vida ao desenvolvimento da lógica. Estudou a lógica formal e abstrata dos processos de investigação utilizados nas mais diversas ciências. Os trabalhos de Peirce, posteriormente, passaram a ser denominados por Semiótica. Estes estudos foram um marco para o estabelecimento das noções de signo e suas aplicações posteriores, aceitas e apropriadas por diversos pesquisadores de todo o mundo, que se interessam pelos estudos da Semiótica e se dedicam às suas aplicações. Os estudos de Charles S. Peirce serão tomados como base conceitual para a melhor compreensão do objeto de estudo desta pesquisa.
A palavra-chave da Semiótica é inferência e este é outro conceito chave para esta pesquisa. A inferência é aquilo que faz com que encontremos uma causa. Em tudo há uma causa e um efeito, criando uma temporalidade nas coisas. De acordo com Pinto (1995), os conceitos de abdução, indução e dedução são importantes nos estudos de lógica realizados por Peirce. Para Charles Sanders Peirce, esses conceitos são denominados de inferências de retrodução, hipótese, inferência hipotética e abdução. Para Peirce, a inferência hipotética seria a responsável pela lógica da descoberta. Para alguns estudiosos, a abdução é considerada um tipo de indução. Peirce a considera especial, por se tratar de um mecanismo por meio do qual as hipóteses e teorias são criadas. A inferência hipotética nos permite formular previsões gerais sem que exista a garantia de resultados corretos.
Os conceitos aristotélicos de indução e dedução são intrínsecos e relacionais à Semiótica. A indução ocorre a partir de várias situações particulares que possuem algo em comum. A partir daí cria-se uma ideia e faz-se uma generalização, isto é o processo de induzir. A dedução é a tentativa da previsão do futuro. Prevemos eventos futuros a partir da indução, generalizando situações com base nos processos de dedução. A partir da observação de fenômenos específicos faz-se uma generalização e, em seguida, dá-se um nome para o que foi observado. E quando acontecer novamente, vai-se deduzir a partir da indução já feita anteriormente e deste modo saberemos como aplicar os conceitos para o tema em questão. Isso é o processo aristotélico de indução-dedução. O homem faz isto naturalmente desde sempre. As inferências são geradas a partir de uma lógica do discurso do sujeito e da própria linguagem. A linguagem capitaliza, cria e sistematiza as inferências.
A Semiótica estuda o processo que tirou o homem da “virgindade” dos sentidos. Tudo que é dito vira palavra e nós, como seres comunicacionais, classificamos durante todo o tempo. Um animal, por exemplo, não faz escolhas sobre o sabor que um alimento terá. De forma geral, ele irá se alimentar daquilo que lhe for oferecido. Já o homem tem um processo diferente, ele sabe e escolhe pelo sabor. Por meio das papilas gustativas, do estudo feito sobre os sabores que já foram nomeados, as escolhas são realizadas. As sensações que são brutas (sabores, por exemplo) são transformadas em significados. A Semiótica estuda esses processos que extrapolam a sensação pura e geram significados. O caminho inverso também é viável e esses significados podem gerar novas sensações no processo de semiose.
De acordo com Pinto (1995), a abdução estudada por Peirce estaria situada entre a indução e a dedução. Todavia, a abdução irá diferir da indução e da dedução pela maior possibilidade de erro subjacente nas hipóteses propostas por ela. Um dos aspectos mais relevantes dos processos de inferência é que tanto a indução quanto a dedução estão baseadas na experiência. De acordo com Pinto (2005, p.8), em seus estudos sobre a Semiótica Peirceana:
A lógica não pode se basear apenas nesses dois tipos de inferências, uma vez que a experiência humana sugere uma maneira de se derivar ou manipular informações que não é tão bem definida, como a indução e a dedução, mas que ainda assim é responsável pela descoberta do desconhecido. Dos tipos de inferência, a abdução é o único que se projeta para o futuro, uma vez que tanto a dedução, quanto a dedução relacionam-se ao passado daquilo que já é conhecido, já que fazem referência à experiência. Como palpites, os processos abdutivos podem levar a erros. Entretanto, a falibilidade de uma hipótese não quer dizer que a abdução seja um processo de ensaio e erro. Fundamentalmente, o que acontece é que a hipótese é formulada com base se na experiência, através da escolha de um interpretante logicamente possível para os signos que se oferecem à observação.
Deste modo, a inferência abdutiva é de caráter intuitivo e consideravelmente bem respaldada sobre um processo de semiose qualquer, mas que deverá ser comprovada futuramente por dedução, afim de que se confirme a inferência indutiva sobre a propositura apresentada por aquele processo de semiose.
De acordo com Peirce (1931-1958), signo é algo que representa alguma coisa para alguém imerso num determinado contexto. É intrínseco ao signo o seu caráter representacional. Ou seja, o signo tem por objetivo estar no lugar de algo, ocupar uma posição na mente de um interpretante, representando algo, sem ser exatamente o algo representado. O signo é uma manifestação que tem por ordem representar algo que lhe deu origem. O signo somente poderá atuar como tal se ele for capaz de manifestar a sua habilidade de representação, ou seja, pela sua capacidade de substituir um outro algo diferente dele próprio, o signo. Segundo Santaella (1992), o signo não é a coisa representada, apenas está em seu lugar.
Para Santaella (1992, p.12), “o signo só pode representar seu objeto para um intérprete, e porque representa seu objeto, produz na mente desse intérprete alguma outra coisa (um signo ou quase-signo) que também está relacionada ao objeto não diretamente, mas pela mediação do signo”.
A autora demonstra este raciocínio a partir das representações possíveis que a palavra casa pode ensejar.
Por exemplo, a partir de alguns dos diversos signos que o objeto casa pode possuir. A própria palavra casa, a pintura utilizada nas paredes de uma casa, um desenho de uma casa, a foto de uma casa, uma planta baixa ou uma maquete de uma casa ou mesmo um filme que apresente uma casa, ou ainda, o nosso olhar sobre esta casa, constituem-se em signos do objeto casa. Todos estes signos não são a própria casa, mas representações possíveis do objeto casa, nem sendo eles, portanto, a própria casa. Estes signos possuem a capacidade de substituir, de certo modo, o objeto, em dadas circunstâncias ou situações, de acordo com a natureza do signo. Como por exemplo, a natureza de uma foto não é a mesma natureza de uma planta baixa. (SANTAELLA 1992, p.12).
Para a Semiótica Peirceana, o signo é manifesto como uma relação triádica entre objeto, representâmen e interpretante. O objeto está sendo representado pelo signo, o representâmen, por sua vez, é aquilo que o signo representa e o interpretante, o processo de interpretação do signo, propriamente.
Para Peirce, o representâmen representa o objeto em relação a determinadas capacidades e aspectos. Entretanto, o representâmen não é o objeto em si. O interpretante é uma espécie de processo relacional definido na mente do intérprete, uma vez que para Peirce a “mente” é vista como um conceito formalizado capaz de processar as relações triádicas (Niemeyer, 2007).
Em 1867, Peirce propôs as categorias universais da experiência e do pensamento. Peirce considerava experiência tudo que pudesse trazer até nós certa capacidade de reconhecimento, sendo que esta capacidade de reconhecimento é uma das formas possíveis de pensamento. Para o autor, tudo que é elevado ao nível da consciência ocorre numa escala de três propriedades fundamentais correspondentes aos estágios formais de toda e qualquer forma de experiência. Os estágios da experiência estão em constante fluxo de referências apontadas na direção uns dos outros. O fluxo de comunicação entre os três estágios da experiência é contínuo.
Peirce denominou as categorias universais de: qualidade, relação, este posteriormente renomeado para reação e representação, também substituído por mediação, mais tarde. Estas categorias receberam terminologias inovadoras à época e livres de associações pré-existentes, sendo chamadas respectivamente de: primeiridade, secundidade e terceiridade. Estas categorias são também denominadas categorias fenomenológicas de primeiridade, secundidade e terceiridade, dentro de um nível máximo de generalização. A primeiridade caracteriza-se por seu caráter qualitativo e sensível, determinados pelo imediato, pela sujeição ao acaso, pelo indeterminismo momentâneo, pela espontaneidade, pelo status ainda carente de informações determinísticas capazes de suscitar ação. A primeiridade é inquantificável, vaga e indefinida em essência, um sopro de qualidade suscitável. A primeiridade encontra-se evidente em tudo que estiver concatenado com casualidade, oportunidade, atributos ou qualidades, originalidade e sentimento e autonomia. De acordo com Peirce, aspectos chamados de mônadas. Para Santaella, a primeiridade é:
Uma consciência imediata tal qual é. Nenhuma outra coisa senão pura qualidade de ser e de sentir. A qualidade da consciência imediata é uma impressão (sentimento) in totum, indivisível, não analisável, inocente e frágil. Tudo que está imediatamente presente à consciência de alguém é tudo aquilo que está na sua mente no instante presente. (SANTAELLA, 1990, p.9).
A secundidade ou segundidade, para Peirce, irá caracterizar-se pela manifestação específica de um momento segundo, apoiado em um momento primeiro. Trata-se da experiência, da relação causal e experimentada capaz de gerar relação. Enquanto a primeiridade se caracteriza pelo simples fato da existência de um fenômeno, a secundidade encontra-se na materialização da qualidade que, para existir, precisa estar corporificada materialmente. A secundidade está conectada às ideias de deliberação, subordinação, dualismo, embate e luta, aqui e agora, ação e reação, sobressalto e incerteza:
A qualidade é apenas uma parte do fenômeno, visto que, para existir, a qualidade tem de estar encarnada numa matéria. A factualidade do existir (secundidade) está nessa corporificação material. […], por conseguinte, qualquer sensação já é pivô do pensamento, aquilo que move o pensar, retirando-o do círculo vicioso do amortecimento (SANTAELLA 1990, p.10).
A terceiridade relaciona-se à universalidade, à generalização, à inteligência, ao desenvolvimento e à propagação, ao encadeamento e crescimento. Para Peirce, a forma mais simples de manifestação da terceiridade está manifesta no signo. Considerando que o signo é um primeiro – algo trazido a uma mente – que está conectado a um segundo, que é algo que é indicado pelo signo, referido ou representado por ele, leva a um terceiro, que é o efeito provocado pelo signo em um provável intérprete. A terceiridade é uma experiência cultural compartilhada que coloca o sujeito em uma estrutura de cognição e de pensamento. A terceiridade é um processo intelectualizado na forma de uma lei. Pela terceiridade, um processo lógico começa a ser encontrado. Uma lei, um padrão começa a ficar visível. Para Peirce (1992), o elemento ligado às noções de devir, generalidade, continuidade, crescimento, mediação, infinidade, inteligência, lei, regularidade, aprendizagem e hábito foi chamado de terceiridade. Para Pinto (2005), por se tratar de uma previsão, a inferência hipotética característica dos fenômenos associados à Semiótica irá se inserir na terceiridade, entretanto, por se tratar de um ato de insight, quase como se fosse um flash de luz, trata-se de um terceiro com teor de primeiro.
O signo pode ser decomposto em partes que representam as relações sígnicas. Embora a ocorrência se dê de forma globalizada e não segmentada, este pode ser observado a partir do que foi denominado por Peirce de tricotomias. As tricotomias são importantes definições para que se possa entender as dimensões sobre o qual o signo pode atuar: relação instrumental (nível sintático), relação objetiva (nível semântico) e relação interpretativa (nível pragmático).
O nível pragmático é especialmente importante por se tratar da relação com a experiência. A observação da decomposição da estrutura do signo é especialmente importante para analisar a dimensão pragmática presente na relação interpretativa do signo. A experiência está essencialmente ligada ao processo pragmático. Conforme Romanini (2010, p. 3), “o pragmatismo não é a simples ênfase dos resultados práticos, mas um método de conduta intelectual pautada por propósitos intelectualmente criados e continuamente aprimorados por meio da experiência e reflexão tendo em vista um bem final”. O signo em si enseja sentido, percepção e processo representativo. Esta relação instrumental é denominada representâmen e encontra-se no nível sintático e material do objeto.
O objeto corresponde à relação objetiva que se dá no nível semântico do signo. Para que algo seja representado, como ocorre no processo de significação, este deve ser passível de representação. O objeto em si é a própria estratégia de representação. Para Neimeyer (2003, p. 36), “as estratégias pelas quais esse algo se faz representar constituem o seu objeto, ou seja, a natureza da mediação que o signo estabelece com o objeto dinâmico. O objeto (ou meio) é o modo como o signo se refere àquilo que ele representa”. O objeto em sua natureza semântica pode ser decomposto em ícone, índice e símbolo. Esta classe de signos é especialmente importante para a análise semiótica de sistemas de interação humano-computador (IHC) através do Método de Inspeção Semiótica (MIS), tendo em vista que se trata de aspectos semânticos que são extremamente relevantes no processo de avaliação de comunicabilidade de sistemas e softwares.
A terceira classe de signos encontrada no signo, de acordo com Peirce, é o interpretante. O interpretante irá corresponder às possibilidades interpretativas do signo. Neste ponto é importante distinguir o intérprete em relação ao interpretante. Santaella e Nöth (2004, p.166) afirmam que: “o interpretante é um conceito muito vasto que inclui o intérprete, mas não se reduz a ele. O intérprete corresponde apenas a um dos níveis do interpretante, que Peirce chama de interpretante dinâmico”.
De acordo com Neimeyer (2003), o intérprete é um sujeito do mundo natural que se faz em uma mente interpretadora capaz de elaborar algum interpretante proposto pelo signo. O interpretante, por sua vez, é a perspectiva que o signo pode projetar na mente de um indivíduo. O processo de semiose ocorre a partir de possibilidades inúmeras, praticamente infinitas, de interpretação do signo de forma contínua. O sujeito intérprete realiza infindáveis abordagens em diferentes domínios do signo, sem obrigatoriamente consumi-lo em sua totalidade. O objeto, por sua vez, pode ser decomposto em: rema, discente e argumento.
O signo encontra-se em uma posição de mediação entre algo ausente e um intérprete presente. A partir da organização em sistemas de codificação os signos irão constituir a base de toda forma de comunicação na condição de sistemas de linguagem. A linguagem é a base fundamental de todo e qualquer tipo de processo comunicacional. As linguagens podem ser classificadas de acordo com a natureza dos códigos comunicacionais nela empregados: linguagem verbal, linguagem não-verbal e linguagem sincrética. A Semiótica, como um sistema filosófico enseja ferramentas capazes de permitir o entendimento do complexo arranjo de relações que são estabelecidos no processo de semiose abrangendo toda e qualquer forma de linguagem.
Segundo Niemeyer (2007, p. 9), “o ordenamento desse conjunto de relações pode permitir ao designer antever certas significações […]. É justamente nesse processo que os dados da realidade ganham status de informação e de conhecimento”. Uma vez que o processo de semiose ocorra de forma controlada intelectualmente ocorre a geração de produtos, que nada mais são que a materialização das possibilidades no espaço-temporal.
De acordo com Peirce, qualquer coisa pode ser um signo. Para tanto, basta que algo tenha a capacidade de representar outra coisa de modo a criar outro signo, que é seu interpretante. A coisa representada pelo signo é denominada por Peirce de objeto. Essa definição de signo implica necessariamente em uma relação indissociável entre signo, objeto e interpretante. Não existe signo sem que existam também objeto e interpretante.
O processo de semiose ocorre de forma contínua e por tríades (triádico), evoluindo no propósito de interpretantes com um grau de desenvolvimento cada vez mais elaborado. Para Romanini (2008, p. 2), “o signo é uma entidade dinâmica em desenvolvimento contínuo em direção a um interpretante final”. Segundo o autor, o processo de criação típico do design é um justaposto exemplo do complexo dinamismo da semiose.
Para Neimeyer (2003, p. 9):
A ocorrência de produto é resultante e expressão de um cenário político, econômico, social e cultural, dentro das dimensões histórica e geográfica. Ao se realizar no mundo, o produto está sujeito a interferências várias, determinadas pelas contingências do sistema em que participa.
Neimeyer (2003) explica que um indivíduo ao interagir com um produto aciona diversos tipos de filtros: “filtros fisiológicos (acuidade de percepção), filtros culturais (ambiente, experiência individual) e emocionais (atenção, motivação)”. Os indivíduos, em face de suas estruturas mentais, tendem a reagir respondendo ao produto proposto.
As bases da teoria filosófica de C. S. Peirce são tomadas como fundamentalmente importantes para a definição dos rumos da pesquisa proposta, dada a sua relevância para a evolução dos estudos na área de design de interação, Engenharia Semiótica e Interação humano-computador como subsídio indispensável para a evolução de tais campos de estudos da interface, aqui considerada como ambiente natural de interação entre usuários e designers.